Maquinalmente agarrou o cabelo e fez um coque.
Sua mãe sempre lhe diz para apanhar o cabelo "ficas mais leve", mas sempre achou que a fazia mais velha.
Perto de entrar nos "enta" que começam por um "q", parecer mais velha não é opção.
Pega num disco de algodão e retira a maquilhagem dos olhos lentamente, como se de uma cena em câmara lenta se tratasse.
Olhou para o espelho uns momentos.
Ainda faltam os 3 passos: lavar, esfoliar e hidratar.
E assim fez, com calma e sem escutar os barulhos de fundo das crianças, alheou-se do mundo e entrou no seu.
O seu mundo.
Porque só pode ser só seu.
Ninguém o compreende nem tão pouco o apoia.
Sente-se muito só.
Tanto, que consegue ouvir o seu coração a bater e a sua respiração em movimentos lentos de inspiração e expiração.
"Só tu fazes isso"; "Só tu pensas assim"; "Fazes e ninguém te retribui".
"Sim, faço assim, penso assim e sou assim.", diz a olhar para o espelho.
Sorri.
Os dentes brilharam e pensou no que lhe tinha dito havia uns dias "quem tem dentes bonitos beija bem".
Sorriu novamente. "Que disparate", pensou. Quem terá inventado esta analogia?
Tem um sorriso bonito.
Discretamente, isola-se e escreve.
Só a escrever consegue colocar os pensamentos em ordem.
Não por prioridades, mas em ordem.
As prioridades normais, há muito que o não são.
Ter-se-á tornado egocêntrica?
Um pouco talvez.
Mas mesmo com os pensamentos em ordem
Com soluções para os desvios dessa ordem
Continua sem entender.
"Como é que é possivel?"
Perguntou-se tantas vezes
Mas a resposta não vem, sabe disso.
Ou melhor, a resposta ela sabe-a,
Mas quer escondê-la, enterrá-la e fingir que não existe.
Sente-se só.
E queria falar, perguntar, responder e chegar a um entendimento.
Mas a recepção é fria.
Calculista.
Indiferente.
Arrogante.
Tal como um animal ameaçado.
"Medo." "Insegurança".
Faz parte.
A vida e as pessoas são assim mesmo - não somos animais mas temos instintos animais, e neste caso, não foram, de todo, os mais agradáveis.
Queria dizer qualquer coisa que valesse a pena naquele momento em particular.
Mas não saiu nada. E o que saiu parecia saído de um filme de Woody Allen, sem jeito nenhum, aos trambulhões.
Gosta de Woody Allen e dos seus filmes, aliás estes filmes são sempre um retrato fiel da sociedade e dos relacionamentos entre as pessoas.
Por mais nú e crú que nos pareça.
É real.
O sol estava a pôr-se e a imagem laranja azulada daria uma bonita fotografia.
Talvez noutra altura.